Travessia Marins-Itaguaré – Caminhando pelas Cristas da Mantiqueira

Amantes do trekking no Brasil, por certo já leram e viram, dada a grande quantidade de material disponível no YouTube e afins, relatos com detalhes dessa impressionante travessia, sempre acompanhados de muitos superlativos: “a mais difícil, a mais técnica”. Eu pessoalmente não uso esses termos, afinal, mais difícil pra quem? Mais técnica comparada com qual?

Tudo vai depender de você, da sua experiência, do seu planejamento e das pessoas que irão lhe acompanhar.

Travessia Marins-Itaguaré
Foto: Fábio Matuzawa

Inicialmente quero passar alguns dados geográficos e ecológicos. O maciço do Marins-Itaguaré está localizado na divisa entre São Paulo e Minas Gerais (municípios de Piquete e Cruzeiro do lado paulista e Marmelópolis e Passa Quatro do lado de MG). A travessia, incluindo o cume dos Marins e do Itaguaré, tem aproximadamente 18 km de extensão, e um ganho total de altitude (também aproximado) de 1.500m.

Um estudo recente (2019) desenvolvido por Lucas Nogueira identificou nada menos que 240 espécies de plantas com flores (angiospermas) no Maciço Marins-Itaguaré, com a ocorrência de 12 espécies de orquídeas! Isso sem contar musgos, fungos e líquens. Da fauna não existem estudos conclusivos nos maciços do Marins-Itaguaré, mas não é raro avistar mamíferos (gato mourisco, tatu nove cintas, tamanduá mirim, pequenos marsupiais) e muitas aves, dentre elas o gavião pombo pequeno, a águia cinzenta, o gavião-tesoura (migratório) entre muitas outras.

Travessia Marins x Itaguaré
Foto: Fábio Matuzawa

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Em seu conjunto, o maciço do Marins-Itaguaré, juntamente com o maciço da Serra Fina e o Parque Nacional do Itatiaia, formam uma sequencia de elevadas montanhas e espigões rochosos que se destacam e diferem muito do restante do que conhecemos por Serra da Mantiqueira. Por isso, em 2006, quando escrevi, juntamente com Alexandra Andrade, uma proposta de criação de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral para os maciços do Marins-Itaguaré e Serra Fina, chamamos esta região de Cristas da Mantiqueira. Foi a 1ª vez que esse nome foi citado em documentos públicos, e atualmente é utilizado por instituições e órgãos oficiais para identificar esta singular porção da Serra da Mantiqueira.

Mas então, o que você pode esperar dela? Em primeiro lugar, uma beleza de tirar o folego. Em segundo, muito esforço físico. Segundo a classificação de trilhas da FEMERJ ela é considerada uma trilha EXTRA PESADA com muitos trechos íngremes em piso rochoso, diversos obstáculos onde será necessário usar as mãos para progredir, desnível total acentuado (aprox. 1500m), trechos com exposição de altura, sinalização deficiente e a necessidade do uso de corda para garantir a segurança em alguns trechos (descida do pico do Marinzinho, e na chegada ao cume do Itaguaré).

Marins Itaguaré - trecho com corda
Trecho da travessia com utilização de corda. Foto: Fábio Quireli

A travessia começa na base do Marins (Refúgio Marins, cota 1.570m), percorrendo inicialmente um pequeno trecho florestal, que logo é substituído por áreas onde predomina uma formação bem mais baixa e com menor número de espécies, na qual a Candeia é a espécie arbórea mais numerosa.

Do morro do Careca (1 hora de caminhada da base, cota 1.780m) avistamos o maciço do Marins em toda a sua grandiosidade. Uma curiosidade neste ponto. A 1ª vez que ali cheguei (em 2003) uma pergunta surgiu naturalmente: “como que esse maciço não é um Parque (nacional ou estadual)?” Tenho algumas sugestões de respostas para esta situação, mas o fato é que essa região, apesar de alguns títulos de proteção, segue efetivamente sem nenhuma regulamentação de uso público.

A partir do morro do Careca, e nas próximas 2 horas de trilha, concentram-se os maiores esforços desse primeiro dia. As áreas de floresta já cederam lugar aos Campos de Altitude, e você estará exposto definitivamente as condições climáticas em toda sua intensidade, sejam elas chuva, vento, sol, nevoeiros. As dificuldades técnicas neste trecho são de curta duração, ficando o desafio maior reservado a uma grande rampa rochosa, de aproximadamente 40 metros de extensão, e que na sua porção mais íngreme tem 45 graus de inclinação. Caso não se sinta seguro para subir diretamente pela rampa, o que de fato exigirá uma boa técnica no uso dos pés e dos bastões, é possível subir pelos blocos de rocha à direita.

Rampa na travessia Marins Itaguaré
Foto: Fábio Matuzawa

Trechos íngremes durante a travessia
Trechos íngremes durante a travessia. Foto: Fábio Matuzawa

Passada a rampa, em mais alguns minutos você estará na base de um maciço rochoso, que deverá subir. Neste local, que desde 2018 passei a chamar de Praça do Francês (em homenagem ao corredor de montanha francês Eric Welterlin, que justamente neste local, perdeu por completo a orientação da trilha, saiu do caminho e veio a falecer de hipotermia na noite do dia seguinte).

Portanto, nunca subestime as montanhas. Para realizar essa travessia com segurança, planeje todos os detalhes. Colete informações prévias, leve-as com você (impressas se for o caso) e use-as antes de perder sua orientação.

Uma vez que você esteja no platô (cota 2.200m) entre os cumes do Marins (cota 2.420m) e Marinzinho (cota 2.393m), observe olhando para o quadrante Leste, uma longa rampa rochosa: é por ali, pela sua crista que a travessia prossegue. Desse ponto até a Pedra Redonda, considere ao menos umas 4 horas de caminhada. Após a Pedra Redonda (menos de 10 minutos), existe uma área de acampamento com espaço para umas oito barracas.

Pedra Redonda - travessia Marins x Itaguare
Pedra Redonda e o cume do Marins. Foto: Tiaraju Fialho

Eu recomendo realizar a travessia em três dias para aproveitar todos os benefícios desse lugar incrível. Nesse formato, minha sugestão é subir até o platô entre o cume do Marins e do Marinzinho no primeiro dia (cerca de 04h30min horas com mochila pesada). Ali estabeleça seu acampamento e faça ainda à tarde a ascensão do cume do Marins. No 2º dia, comece bem cedo, e se conseguir, vá assistir o nascer do Sol no cume do Marinzinho (a vista mais linda de toda a travessia em minha opinião) e siga de lá em direção a Pedra Redonda, onde recomendo fazer o 2º acampamento. No 3º dia, em pouco mais de 03h30min você alcançará a base do pico do Itaguaré. Deixe as mochilas em um local seguro, e em pouco mais de 30 minutos você alcançará o cume. Atenção, a chegada ao cume, nos seus últimos 4 metros exige atenção e uma corda é bem vinda para garantir a segurança, pois um escorregão pode ter consequências graves. Depois de descer do cume e pegar suas mochilas, uma descida tranquila de aproximadamente 02h30min levará você e seus amigos a base do Itaguaré, de alma lavada, o corpo cansado e certamente muitos sorrisos e histórias para compartilhar.

Travessia Marins-Itaguare
O imponente Pico do Itaguaré. Foto: Fábio Quireli

Travessia Marins Itaguare - Foto: Tiaraju Fialho
Foto: Tiaraju Fialho

A seguir, dou algumas dicas para uma aventura segura. Avalie se você está fisicamente preparado (pense no último trekking que fez e como se sentiu), e avalie, e peça que o façam também, as pessoas que vão te acompanhar.

Não adianta deixar sua mãe avisada que você foi pra travessia. Possivelmente ela não vai lembrar nem do nome e nem onde fica e não saberá tomar as iniciativas corretas caso você não volte no dia combinado. Deixe avisado alguém que possa tomar as providências caso você não retorne no dia e hora combinados. Informe a essa pessoa o percurso que irá fazer, os possíveis locais de acampamento e uma previsão do dia e hora que pretende concluir; combine com ela que você mandará uma mensagem avisando que concluiu o caminho com sucesso. Caso você não faça contato, essa pessoa iniciará os procedimentos de resgate (comunicação, mobilização e busca). Outra dica importante de contingência é se informar sobre os hospitais e Pronto Socorros na região, horários de plantão e que especialidades dispõe, e levar anotados os telefones deles.

Não deposite toda sua confiança nos apps de navegação, só assim você vai desenvolver plenamente suas habilidades, usar e desenvolver seu instinto e seu faro para rastrear o caminho correto Apps podem falhar e o mais popular deles, tem vários traklogs com erros de marcação.

Monitore as condições climáticas constantemente, observando as nuvens e o vento. No seu planejamento você já antecipou as condições do tempo que iria encontrar. Considere abortar em caso de chuva. Uma chuvinha de poucos milímetros lá em cima pode vir acompanhada de descargas elétricas e se tornarem um risco difícil de minimizar. Caminhar embaixo de chuva além de super desconfortável, aumenta consideravelmente o risco de escorregões com consequências imprevisíveis. Além disso, chuvas em geral são acompanhadas de nuvens baixas e neblina, o que pode provocar desorientação caso você estivesse contando com o visual para navegar. Como disse Mark Twight em seu livro Alpinismo Extremo, “…se está chovendo, o que você está fazendo na montanha?

Evite paradas muito prolongadas (você perderá tempo precioso e irá esfriar o corpo) e comer muita gordura e proteína ao longo da caminhada. Reserve esses alimentos para o final do dia, Ao longo da trilha, prefira alimentos ricos em carboidratos, frutas secas e beba água regularmente.

Muitas pessoas que iniciam em caminhadas, temem “morrer” de fome e de frio. Racionalize suas escolhas e lembre-se, tudo irá às suas costas. Mas não economize no seu saco de dormir. É um investimento para muitos anos. Melhor dormir com o saco de dormir aberto porque está calor, do que passar horas acordado tiritando de frio e não alcançar o devido repouso a noite.

Recomendo fortemente o uso de bastões de caminhada (um par), pois além de aliviar o esforço das pernas, protegem suas articulações (joelhos e tornozelos), auxiliam no equilíbrio e na estabilidade. Além de poderem ser usados para criar um abrigo de emergência e até para improvisar uma tala para imobilizar uma eventual fratura.

Marins vs Itaguaré - Fabio Quireli
Os bastões de caminhada irão ajudar a reduzir o desgaste físico e podem ser úteis em situações de emergência. Foto: Fábio Quireli

Finalmente, embora as mudanças negativas na biodiversidade das montanhas sejam cada vez mais documentadas pelos meios acadêmicos, no caso das montanhas brasileiras existem poucos estudos. O que um olhar atento pode facilmente comprovar é a crescente supressão de vegetação para abertura de espaços de acampamento, o pisoteio sistemático da vegetação ao longo das trilhas, a contaminação de nascentes, por restos de comida, pisoteio, urina e fezes e a presença de animais domésticos, especialmente cachorros, levados por caminhantes desavisados ou negacionistas dos impactos que estes alegres seres causam a fauna local.

Um dado científico, no entanto, expõe a importância, fragilidade e urgência de preservação desses ecossistemas. Segundo o Instituto Florestal do Estado de SP, as áreas de campos de altitude das Serras paulistas, representam tão somente 0,06% do total do bioma de Floresta Atlântica neste Estado. Pode-se entretanto, extrapolando otimistamente os números, concluir que as áreas dos campos de altitude reunidas, de SC, PR, SP, MG, RJ e ES, não alcance sequer 1%!

Por tanto, uma atitude respeitosa e responsável é um dever de todos. Não viaje em grupos grandes, pois são muito mais impactantes que grupos pequenos. Não aceite que guias e agências reservem clareiras para seu grupo (quem chegar depois pode querer cortar a vegetação para abrir espaço). Não sente sobre a vegetação nem jogue sua mochila sobre ela; opte por sentar e descansar sobre as rochas. Tendo opção, pise sobre as rochas, protegendo plantas e solo. Carregue todo seu lixo embora, inclusive os restos de comida, papel higiênico e fezes. Não colete flores nem rochas. Nunca faça fogueiras e oriente amigos e vizinhos de barraca a não fazer.

De resto, aproveite a experiência, conecte-se com a natureza e viva intensamente!

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Texto por: Tiaraju Fialho, guia e instrutor responsável da Capim Amarelo – Escola de Montanhismo e Escalada

 

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Tiaraju Fialho

Tiaraju de Mesquita Fialho é biólogo com especialização em Gestão de Bacias Hidrográficas. Iniciou no montanhismo através do escotismo com 11 anos (1976). Aos 15 anos começou a frequentar o Clube Paranaense de Montanhismo (CPM) em Curitiba. Com 17 anos concluiu o Curso Básico de Escalada no mesmo clube e nunca parou de escalar e explorar montanhas, acumulando vasta experiência em montanhas no Brasil e no exterior. Em 2017 criou a Capim Amarelo – Escola de Montanhismo e Escalada. Desde então, dedica-se em tempo integral à realização de cursos de escalada básico e avançado e cursos de montanhismo, além de saídas para trekking nos principais maciços da Serra da Mantiqueira.

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Nenhum comentário

  1. Muito bom o texto! Fazendo um ótimo paralelo entre a importância da conservação da natureza e das unidades de conservação, apresentando dados técnicos de fauna e vegetação e não esquecendo do itinerário recomendado para a travessia, com dicas de comportamento e exemplos de técnicas!!
    Na minha opinião, informação completa para o aventureiro e amante da natureza!
    Parabéns ao autor e ao portal pela publicação.
    Espero também que a pressão para conservar essas áreas seja cada vez mais forte!
    Alexandre Lorenzetto – Biólogo

  2. Muito bom o texto: esclarecedor e estimulante!
    Subir uma montanha requer preparo físico, cuidado e atenção plena.
    A maior alegria de subir no alto da montanha é perceber a grandeza da natureza, a sensação de pertencimento e a contemplação da mesma!

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